sexta-feira, 3 de março de 2017

Lilicando - Carlos Drummond de Andrade


Meu livro velhinho, tantas vezes folheado. Encontra-se remendado, com páginas amareladas e cheiro de tumba faraônica. Gosto da forma simples que Drummond retrata o cotidiano. Me agrada todas as suas fases, das reflexões existenciais carregada  de pessimismo e individualismo, os temas sociais e da fase saudosista, imerso nas reminiscências da infância e relação familiar.  Melhor que ler Drummond é ouvi-lo recitar sua própria obra. E para serenar o coração nessa sexta feira de um quase Outono, vamos de Carlos Drummund de Andrade...poeme-se! 



Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.


Os Ombros Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


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