(Foto: Lílian Pinho) |
Tenho esse livro há anos. Está bem
velhinho. É um "manual de emagrecimento"? Não. Fala sobre dicas de
saúde? Também não. Contém receitas e dietas? Muito menos. O livro trás uma reunião de crônicas do Luís Fernando Veríssimo. De maneira inteligente e divertida ele narra suas experiências gastronômicas. Fala da nossa relação de necessidade e prazer com a comida. É uma leitura bastante digesta. Segue uma das crônicas:
O Buffet
Um dos
martírios da vida social moderna é o buffet. Ele nasceu com boas
intenções,como resposta à necessidade de alimentar da maneira mais prática o
maior número de pessoas com o máximo de elegância possível. Isto é, sem que a
festa pareça um rififi no refeitório.
E difícil servir 300 ou 400 pessoas nas suas mesas e ao mesmo tempo, à
francesa,a não ser que haja quase tantos garçons quanto convidados. A solução,
já que a comida não pode ir às pessoas, é as pessoas irem à comida. Outra
vantagem do buffet é que, com pratos
concentrados sobre uma única e bem ornamentada mesa, ele dá a correta impressão
de abundância. Que é, afinal, o que nos leva a festas. Todo buffet é uma alegoria à fartura. Há
cascatas de camarões, leitões esquartejados e remontados sobre pedestais de farofa,
everestes de maionese, continentes de saladas e de frios. Uma vez, juro, vi um
faisão empalhado no centro da mesa, na pose de quem se preparava para decolar
deste insensato mundo. Só o que o mantinha na terra era a sua própria carne, em
fatias, a seus pés. Diante de um buffet você
deve se debater entre dois sentimentos: a vontade de comer tudo e o remorso por
estragar a arquitetura. Depois, é claro, de agradecer à providência por
pertencer aos 30% da população que comem e à minoria ainda menor que é
convidada a buffets. Pois o buffet também é a apoteose da
boca-livre.
Os críticos mais moderados do
buffet o comparam a uma linha de montagem, e fazem uma injustiça. A linha de
montagem é mais organizada. Ao redor de uma mesa de buffet o ser humano reverte ao seu protótipo mais primitivo: a fera
diante do alimento. A patina de civilização se quebra, como o exterior
caramelado do presunto, e é cada um por si e pelo seu estômago. Já vi velhos
amigos duelarem a empurrões diante de um rosbife, e marido e mulher chegarem
aos tapas na disputa do último camarão.Porque a verdade é que o buffet não dá certo. Ele
pressupõe um desprendimento com relação à comida que ninguém tem. Embora alguns
finjam que têm.
— Vou esperar
que os selvagens se sirvam e depois Vou até lá diz ele, sorrindo com desprezo
para a horda em volta da mesa.
— Eu, se fosse
você, não esperava. O bolo de peixe já estava pela metade — avisa alguém.
— Epa — diz
ele, e mergulha no meio da horda, usando os cotovelos para abrir caminho.
Mas o buffet é irreversível e
o negócio é aprender a conviver com ele. Existem algumas regras de conduta que
nos ajudam a sair de um buffet, mesmo
o mais concorrido, razoavelmente bem alimentados e sem danos, fora alguns
rasgões na roupa. Aprendi com a experiência e tenho as marcas de garfo na mão
para provar. Tome nota.
Antes de mais nada, não
obedeça a ordens. É comum o anfitrião sugerir, bem-humorado, alguma espécie de
hierarquia no acesso ao buffet.
Primeiro, as mesas deste lado ou daquele, primeiro os mais velhos, as
autoridades, os mutilados de guerra etc. Ignore-o. Seja o primeiro a saltar da
mesa, mesmo fora de ordem. O máximo que pode acontecer é você receber olhares
feios. O que importa isto diante de uma cascata de camarões ainda intocada e da
oportunidade de escolher os melhores tomates? Nunca desmereça as vantagens de
chegar primeiro.
Estude o terreno — O planejamento é importantíssimo. Ao entrar
na festa, examine cuidadosamente o buffet.
Resista à tentação de começar a botar camarões no bolso. Isto é apenas um reconhecimento.
Decore a localização dos
pratos mais importantes.Geralmente, há 17 tipos diferentes de salada de batata.
Concentre-se numa para não perder tempo depois.
Faça uma anotação mental do
melhor acesso à lagosta, se houver. Lembre-se de que dois ou três pedaços de
lagosta valem uma travessa de peito de peru em qualquer mercado de valores do
mundo. Decida se por uma estratégia de ataque. Se preciso, estude uma ação diversionista.
Na hora de avançar, dirija-se resolutamente para os embutidos e, à última hora,
desvie rapidamente para a lagosta, confundindo o inimigo.
Macetes — com o tempo,
você os desenvolverá sozinho. Cada um tem seu estilo.Alguns lembretes, no
entanto. Se possível, sirva-se com dois pratos, com o pretexto de que está
servindo a sua mulherzinha, ou o seu maridinho, também. Se você realmente está
com sua mulher ou seu marido, melhor. Ela ou ele pode fazer o mesmo e dizer que
está servindo você. O trabalho em equipe é importante desde que se combine
previamente quem ficará com todos os camarões. Atenção: jamais use a
colherzinha que está junto ao pote para servir
o caviar se houver uma colher de sopa à mão.
Seja impiedoso — Está bem, ninguém quer ser imoral, mas estamos
falando de comida! Se a pessoa à sua frente não se mexe e impede seu acesso aos
mexilhões, que desaparecem rapidamente, use o cabo do garfo discretamente entre
a última e a penúltima costela. Se não der certo, use a ponta do garfo. Espalhe
o boato de que o leitão no centro é de plástico e só está ali como enfeite.
Finja que vai verificar e apalpe todo o leitão com as mãos. Diga coisas como:
"Ninguém se mova, acho que caiu uma mosca na vitela tome."Pegue todo
o prato, dando a entender que vai despejá-lo pela janela. Espirre, distraidamente,
em cima dos cogumelos.
Use coação — Geralmente, há um garçom servindo o prato
quente. Provavelmente estrogonofe. É comum o garçom carregar no arroz para
poupar o estrogonofe. Ao apresentar seu prato, encare-o e diga, com o olhar:
"Eu conheço a sua laia, patife. Se me sonegar o estrogonofe, enfiarei a
sua cabeça no molho vinagrete até que você morra!".Despeça-se dele dando a
entender que voltará em breve e ai dele se disser qualquer coisa como
"você por aqui de novo?". No caso de você e outro convidado espetarem
o último pedaço de matambre ao mesmo tempo, sorria enquanto lhe aplica um pontapé.
É incrível o que se consegue com um sorriso.
Você conseguiu e já está
saboreando o prato quente enquanto outros, menos empreendedores, ainda nem chegaram
perto dos tomates. Não se desmobilize, no entanto. Lembre-se de que ainda falta
a batalha dos doces.
Sobre o autor: Luís Fernando Veríssimo assina colunas diárias na imprensa brasileira, e tem obras adaptadas para o cinema, teatro e televisão.
Sobre o autor: Luís Fernando Veríssimo assina colunas diárias na imprensa brasileira, e tem obras adaptadas para o cinema, teatro e televisão.
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